Limites da Câmara Municipal para conferir denominação a logradouros e próprios públicos
24.02.2025 – Direito Público

A denominação de logradouros e próprios públicos desempenha um papel fundamental na organização urbana, permitindo a identificação precisa de endereços, a prestação eficaz de serviços públicos e o correto encaminhamento de correspondências.
Conforme leciona José Afonso da Silva [1], a nomenclatura urbana tem como finalidade precípua a orientação da população, sendo um elemento essencial da sinalização urbana. Além de sua função prática, essa atividade possui relevante carga simbólica e cultural, refletindo a identidade e a memória coletiva de uma comunidade. É comum que figuras públicas de destaque, cujas contribuições foram relevantes para a sociedade, tenham seus nomes perpetuados em bens públicos da União, dos estados ou dos municípios.
Nesse contexto, a participação do Poder Legislativo na definição da nomenclatura dos logradouros constitui um relevante instrumento de preservação da história local e fortalecimento dos vínculos comunitários, uma vez que, em geral, a escolha dos nomes decorre de sugestões e demandas da própria população. Assim, torna-se imprescindível que essa atividade seja realizada de maneira criteriosa, valorizando a memória coletiva, sem desrespeitar, contudo, preceitos e normas vigentes.
Evolução jurisprudencial
A denominação de logradouros e de próprios públicos é matéria de interesse local (CF, artigo 30, I), dispondo, assim, os municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa.
Inicialmente, prevalecia o entendimento de que a competência para denominar logradouros públicos era privativa do Poder Executivo, por configurar ato de gestão vinculado ao serviço público de sinalização urbana. Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“- TJ-SP; ADI 2138349-90.2016.8.26.0000 – Rel. Márcio Bartoli; Órgão Especial; Julgamento: 30/11/2016; Registro: 02/12/2016.
– TJ-SP; ADI 2016974-88.2017.8.26.0000 – Rel. Xavier de Aquino; Órgão Especial; Julgamento: 07/06/2017; Registro: 14/06/2017.”
Todavia, em 2019, o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento ao julgar o Tema 1.070 da Repercussão Geral, fixando que:
“É comum aos poderes Executivo (decreto) e Legislativo (lei formal) a competência destinada à denominação de próprios, vias e logradouros públicos e suas alterações, cada qual no âmbito de suas atribuições.” (STF, Tema 1.070, RE 870.947/DF).
Limites ao exercício da competência legislativa
Embora seja reconhecida a competência da Câmara Municipal para legislar sobre a matéria, essa prerrogativa deve ser exercida em conformidade com os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, vedando a nomeação de bens públicos como instrumento de promoção pessoal ou favorecimento político. A esse respeito, destaca-se o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:
“(…) ao atribuir nome de pessoa viva a bem público, a unidade federativa a um só tempo viola o patrimônio público – pois promove a promoção pessoal de determinado indivíduo, finalidade essa para qual não estão destinados os bens do Estado – e os princípios da moralidade e impessoalidade.” (STF, RE 1.255.157/PE, rel. min. Alexandre de Moraes, julgado em 23/9/2022).
Outros precedentes da Corte Suprema corroboram esse entendimento: ARE 1.423.581, relator: ministro Gilmar Mendes, julgamento: 31/3/2023; ARE 1.480.834, relator: ministro Cristiano Zanin, julgamento: 14/3/2024; ADI 5.181, relator: ministro Celso de Mello, julgamento: 10/8/2020.
Recentes decisões do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo também reafirmam esse posicionamento, como nos casos ADI 2169890-97.2023.8.26.0000 e ADI 2276612-92.2022.8.26.0000.
Impactos da homenagem a pessoas vivas
No julgamento da ADI 2083169-50.2020.8.26.0000 conduzido pelo Órgão Especial do TJ-SP, o relator, desembargador Jacob Valente, destacou as implicações de homenagear pessoas vivas por meio da denominação de próprios públicos:
“Quando o Município, por iniciativa de um de seus Poderes, resolve homenagear pessoa viva utilizando seu nome para batizar próprios municipais (ruas, logradouros, equipamentos, bens públicos, etc.), já está ínsita a intenção de favorecer aquele nome perante a opinião popular, o que não raras vezes desemboca em projetos de futuras disputas eleitorais. (…) Essa prática viola, primeiramente, o princípio da moralidade, pois a máquina pública não pode ser utilizada como instrumento de promoção pessoal ou familiar. Em segundo lugar, afronta o princípio da impessoalidade, uma vez que tais homenagens deveriam ser destinadas a pessoas falecidas que efetivamente contribuíram para a sociedade e são amplamente reconhecidas por isso.”
A revista eletrônica Consultor Jurídico frequentemente noticia casos em que leis semelhantes são declaradas inconstitucionais pelos tribunais pátrios:
1. Município não pode dar nome de pessoa viva a via pública, diz TJ-SP; Disponível aqui
2. STJ confirma anulação de lei que deu nome de ex-prefeito vivo a escola. Disponível aqui:
3. TJ-SP anula lei que dava nome de Silvio Santos a complexo viário da capital. Disponível aqui
Além do evidente desrespeito aos princípios constitucionais, tais medidas acarretam impactos financeiros e administrativos. Recursos públicos são despendidos na elaboração de projetos e na confecção e instalação de placas de sinalização, que posteriormente devem ser removidas após a declaração de inconstitucionalidade. Esse ciclo compromete a credibilidade do Poder Legislativo e abala a confiança da população na atuação parlamentar. Ademais, a anulação da homenagem impõe constrangimento ao próprio homenageado e a seus familiares, que, ao confiarem na validade da norma, veem suas expectativas frustradas.
Diante desse cenário, torna-se essencial a adoção de maior rigor técnico na formulação de políticas públicas voltadas à denominação de bens públicos, evitando práticas que comprometam a segurança jurídica e a estabilidade dos atos legislativos.
Exceção à regra
Embora, na maioria das vezes, a norma declarada inconstitucional seja extirpada do ordenamento jurídico, o Supremo Tribunal Federal, em situação excepcional, reconheceu a necessidade de preservar a denominação de um estádio municipal que recebeu o nome do prefeito em exercício à época da edição da norma. O fundamento para essa decisão foi a necessidade de estabilização das relações jurídicas e o decurso do tempo:
“Não há como ser revogada uma lei, passados quase 30 anos, sob o fundamento de que a ocorrência de vício desde a origem do ato legislativo a tornaria irregular de pleno direito. Tal ocorre frente ao princípio da segurança jurídica, que visa à estabilização das relações sociais, de modo que, passado largo espaço de tempo, não mais podem ser questionados vícios formais ou materiais havidos à época da edição de certa norma.” (STF, AI 794351/MG).
Além disso, a então ministra Ellen Gracie concluiu que não houve violação aos princípios da impessoalidade e da moralidade pública, considerando que o homenageado não participou do ato que culminou na edição da norma com seu nome. No entanto, esse entendimento dificilmente prevaleceria nos dias atuais.
Conclusão
Com a evolução jurisprudencial, consolidou-se o entendimento de que as Câmaras Municipais possuem competência para atribuir denominações a logradouros e próprios públicos (STF, Tema 1.070, RE 870.947/DF). Contudo, essa prerrogativa não é absoluta, devendo observar os princípios da moralidade e impessoalidade, inerentes à administração pública.
A Suprema Corte e outros tribunais pátrios têm reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis que denominam bens públicos com nomes de pessoas vivas, independentemente de sua relevância ou idoneidade. Tal prática configura desvio de finalidade, caracterizando-se como instrumento de promoção pessoal ou favorecimento político.
Além disso, a edição de normas em desconformidade com os ditames constitucionais gera instabilidade jurídica, desperdício de recursos públicos e desgaste da credibilidade do Poder Legislativo perante a sociedade. Nesse contexto, cabe ao Legislativo municipal atuar com prudência e rigor, garantindo que as denominações estejam alinhadas ao interesse coletivo e à preservação da memória histórica da comunidade.
O estrito cumprimento desses deveres não apenas preserva a integridade do ordenamento jurídico, mas também reduz a judicialização de atos legislativos, resguardando a harmonia e independência entre os Poderes.
Fonte: Consultor Jurídico – 22.02.2025
Link: https://www.conjur.com.br/2025-fev-22/limites-da-camara-municipal-para-conferir-denominacao-a-logradouros-e-proprios-publicos/