Acumulação de Cargos Públicos: É ilegal a limitação da soma das cargas horárias a 60 horas semanais
23.04.2018 – SERVIDOR PÚBLICO
AGÊNCIA BRASIL
Nos últimos anos, por ordem da Advocacia Geral da União – AGU, órgãos vinculados ao Governo Federal fizeram uma grande varredura em seus departamentos de pessoal, a fim de encontrar servidores em acúmulo lícito de cargos, empregos ou funções públicas, mas cuja carga horária semanal extrapole 60 (sessenta) horas. Isso porque, segundo o entendimento dos advogados da União, exposto no Parecer AGU 145/1998, os acúmulos, ainda que adequados aos moldes constitucionais, não poderiam ter somatória de carga horária superior a 60 (sessenta) horas por semana, o que faria com que o servidor tivesse o rendimento prejudicado.
A partir de então, os Tribunais começaram a apreciar a questão, tendo prevalecido no âmbito do Superior Tribunal de Justiça – STJ a tese de que a limitação de carga horária em 60 (sessenta) horas seria ilegal, na medida em que não cabe ao intérprete impor ao administrado requisito que o próprio legislador constituinte poderia ter estabelecido e não o fez. Isso porque a CR88, no Art. 37, XVI, se limita a dizer que “é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI: a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”. Como se vê, a Carta Maior não menciona qualquer limitação à carga horária.
Ocorre que, em 14/10/2014, houve a chamada “virada-paradigma” na jurisprudência do STJ, que passou a entender pela regularidade da limitação de jornada imposta pela AGU. O Acórdão abaixo esclarece bem esta mudança:
“AGRAVO REGIMENTAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. ACUMULAÇÃO REMUNERADA DE CARGOS PÚBLICOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DE JORNADA PREVISTA NO PARECER GQ-145/1998, DA AGU.
1. No caso dos autos, o acórdão de origem consignou que o agravante perfaz jornada diária de trabalho de 14 horas, o que totaliza 70 horas semanais.
2. Segundo entendimento até então vigente nesta Corte, não haveria limitação constitucional ou legal, quanto à jornada laboral, a impedir o exercício do direito de o servidor público acumular dois cargos privativos de profissional da saúde. A prova da ineficiência do serviço ou incompatibilidade de horários ficaria a cargo da administração pública.
3. Ocorre que, no julgamento do MS 19.336/DF, publicado em 14/10/2014, Relator para acórdão o Ministro Mauro Campbell Marques, a Primeira Seção, por maioria, assentou novo juízo a respeito do tema ao entender que o Parecer GQ-145/98 da AGU, que trata da limitação da jornada, não esvazia a garantia prevista no inciso XVI do art. 37 da Constituição Federal, ao revés, atende ao princípio da eficiência que deve disciplinar a prestação do serviço público, notadamente na área de saúde.
4. Com efeito, a disposição do inciso XVI do art. 37 da Constituição Federal no sentido de que”é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI”constitui exceção à regra da não acumulação, e, como exceção, deve ser interpretada restritivamente. Só este aspecto, não havendo previsão constitucional à duração máxima da jornada de trabalho, as condições objetivas para a acumulação de cargos devem ser aferidas sob ótica restritiva, porquanto a hipótese, como dito, constitui exceção à regra geral de não acumulação. Agravo regimental improvido”.
(AgRg no AgRg no AREsp 736.635/SE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2015, DJe 16/10/2015).
Após a mudança de entendimento do STJ, os órgãos vinculados ao Governo Federal abriram uma enxurrada de processos administrativos visando fazer com que o servidor optasse por um dos cargos, sempre que a soma das cargas horárias extrapolasse 60 (sessenta) horas.
A determinação, contudo, afigura-se claramente ilegal, encontrando óbice expresso no Art. 2º, inciso XIII, da Lei 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito federal. O citado dispositivo estabelece que a interpretação da norma administrativa deve se dar “da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”. E é justamente o que está sendo feito pela União, que penalizou muitos servidores que estavam em acúmulo lícito, mas tiveram que pedir redução de carga horária ou optar por um dos vínculos em virtude da mudança na interpretação da Lei por parte do Superior Tribunal de Justiça.
Acionada, a Justiça Federal então passou a deferir inúmeras liminares em favor dos servidores públicos prejudicados, com os mais diversos fundamentos, seja: 1) de maneira contrária ao novo posicionamento do STJ; 2) por entender que o novo posicionamento não poderia atingir situações consolidadas; ou 3) por nulidades nos processos administrativos.
É válido ressaltar que o STJ tem posicionamento firmado no sentido de que o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé, situação de boa parte dos servidores, que já acumulavam os cargos ao longo de muitos anos.
Por outro lado, o § 6º do Artigo 133, da Lei 8.112/90, dispõe que para que seja aplicada a penalidade de demissão ou perda de aposentadoria é necessário que estejam presentes dois requisitos: acumulação ilegal e prova de má-fé, o que dificilmente se constatou nos casos concretos, até porque, como dito alhures, o próprio STJ entendia como perfeitamente legal o acúmulo de funções, ainda que com jornadas somadas superiores a 60 (sessenta) horas. O acúmulo era plenamente lícito, tendo havido a mudança de interpretação jurisprudencial somente no final de 10/2014, quando a situação de fato já se prolongava no tempo.
A questão, então, finalmente chegou ao Supremo Tribunal Federal, que até o presente momento já se manifestou em duas oportunidades, em julgados de relatoria dos Excelentíssimos Ministros Celso de Mello e Dias Toffoli, que citamos abaixo:
“E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS – PROFISSIONAIS DA ÁREA DE SAÚDE – LIMITAÇÃO DA JORNADA SEMANAL A 60 (SESSENTA) HORAS POR NORMA INFRACONSTITUCIONAL – REQUISITO NÃO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – INVIABILIDADE DA RESTRIÇÃO COM BASE UNICAMENTE NESSE CRITÉRIO, DEVENDO AVERIGUAR-SE A COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS – AGRAVO INTERNO IMPROVIDO”. (RE 1023290 AgR-segundo, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 06/10/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 31-10-2017 PUBLIC 06-11-2017)
“EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Servidor público. Acumulação de cargos.
Compatibilidade de horários. Fixação de jornada por legislação infraconstitucional. Limitação da acumulação. Impossibilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte é no sentido de que a Constituição Federal autoriza a acumulação remunerada de dois cargos públicos privativos de profissionais da saúde quando há compatibilidade de horários no exercício das funções e que a existência de norma infraconstitucional que estipula limitação de jornada semanal não constitui óbice ao reconhecimento do direito à acumulação prevista no art. 37, inciso XVI, alínea c. 2. Agravo regimental não provido”. (ARE 859484 AgR, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 12/05/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118 DIVULG 18-06-2015 PUBLIC 19-06-2015)
Como se vê, a Corte Maior, de maneira diversa do STJ, entendeu que a existência de norma infraconstitucional que estipula limitação de jornada semanal não constitui óbice ao reconhecimento do direito à acumulação prevista no art. 37, inciso XVI, alínea c. Ou seja, ainda que haja lei estabelecendo limitação de carga horária, estaria contrariando o texto da Constituição, o que inviabiliza a restrição à acumulação com base apenas nesse critério.
Fonte: agência brasil – 20/04/2018