Quando a identidade é um problema na hora de pedir acesso a dados públicos
07.06.2018 – Direito Público
Ter acesso ou pedir acesso a dados públicos é um direito de todo brasileiro, assegurado desde 2011 por uma lei específica, a LAI (Lei de Acesso à Informação). Atender pedidos de informação, portanto, é uma obrigação do agente público, seja quem for o autor da demanda.
Sancionada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff, a lei entrou em vigor em maio de 2012. No decorrer dos seis anos de vigência, a LAI tem entre seus desafios o de evitar que um pedido seja negado ou tratado de forma diferente em razão da identidade do requerente.
A lei exige a identificação, mas essa informação não pode influenciar o atendimento prestado nem servir de justificativa para negar ou atender a um pedido. A ONG Artigo 19, que atua na defesa da liberdade de expressão e do acesso à informação, coletou 24 situações, ocorridas em 8 estados nos últimos anos, em que a identidade dos requerentes tornou-se um problema – desde negativas a pedidos até situações mais graves, como ameaças e intimidações.
Os relatos resultaram no relatório “Identidade Revelada: entraves na busca por informação pública no Brasil”, divulgado em maio. As demandas pediam dados sobre a prestação de serviços, sobre resultados de programas municipais e em alguns casos tratavam de serviços cuja execução havia sido alvo recente de suspeitas de corrupção.
Os exemplos de descumprimento à LAI
A LAI é considerada um dispositivo importante para incentivar a transparência no poder público e facilitar a fiscalização do serviço oferecido em todas as esferas.
Os relatos apresentados pela ONG tratam de pedidos feitos por ativistas, pesquisadores e jornalistas, para quem as reações sofridas foram consequência da atividade desempenhada por eles e por serem conhecidos na cidade onde atuam.
Empecilho
Em Pernambuco, representantes do Centro de Cultura Luiz Freire, em parceria com o Centro Popular de Direitos Humanos, tentaram sem sucesso ter acesso aos valores gastos pelo governo estadual com publicidade em veículos de comunicação. Após sucessivos recursos insistindo no acesso aos dados, o governo informou que não dispunha dos dados sistematizados e permitiu a ida ao arquivo oficial.
“Disseram ‘todas essas caixas representam o ano de 2011, 2012, se virem. (…) A gente não conseguiu essa informação até agora [fins de 2017]”
Renato Pereira
cientista social e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire, em relato à Artigo 19
A prática contraria princípios da LAI, que presume atendimento satisfatório ao cidadão. Apenas informações pessoais (relacionadas à vida privada) e as classificadas como sigilosas não ficam sujeitas à aplicação da LAI. No mais, vale o princípio básico da lei: “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”.
Em São Luís, consórcio formado por empresas responsáveis pela exploração de minérios na região exigiu que o movimento Justiça nos Trilhos se identificasse com documentos formais, como inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica), para atender à solicitação. Tal exigência vai além do previsto em lei.
A Justiça nos Trilhos (JnT) reúne movimentos sociais, pastorais, sindicatos e núcleos universitários que atuam na defesa de comunidades por onde passam os trens da Estrada de Ferro Carajás, de responsabilidade do consórcio – mesmo formado por empresas privadas, ele deve cumprir a LAI por se tratar de um consórcio público.
O caso foi parar na Justiça. Uma decisão liminar determinou o atendimento do pedido ao grupo, mas até abril de 2018 as informações não haviam sido repassadas.
Intimidação
Em 2015, a jornalista Kátia Brasil, da agência Amazônia Real, esperava enfim receber em seu escritório as respostas sobre saneamento básico da concessionária responsável pelo serviço em Manaus. Ao abrir a porta, em vez de um servidor, um oficial de Justiça apresentou uma ação extrajudicial da concessionária exigindo a correção de informações publicadas anteriormente.
A jornalista também recorreu à Justiça e a concessionária desistiu de levar o processo adiante, mas nunca respondeu aos pedidos de informação.
Para a Artigo 19, o caso expõe dois problemas. Primeiro, o fato de a concessionária não ter usado os canais formais estabelecidos pela LAI para responder a pedidos, como e-mail ou sistema eletrônico próprio. Segundo, a tentativa de intimidação por meio da ação judicial.
Tratamento diferenciado
Em 2015, a pedido da Artigo 19, a jornalista Camila Nobrega pediu dados aos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro sobre as obras do BRT Transolímpica, via expressa construída como parte dos projetos viários realizados para os Jogos Olímpicos de 2016. Ela se identificou, como a lei exige, mas sem mencionar ser jornalista.
“Em dois casos me passaram para a assessoria de imprensa do órgão público (…). Inclusive tinha uma assessora com quem eu já tinha feito contato quando era repórter na grande imprensa, e ela deixou claro que sabia quem eu era. O próprio fato de me ligarem explicando que a demanda havia sido passada para a imprensa porque sou jornalista já denota uma irregularidade no cumprimento da lei de acesso”
Camila Nobrega
jornalista, em relato à Artigo 19
Abordagem semelhante ocorreu em São Paulo, em 2017, com jornalistas que fizeram pedidos diversos à prefeitura. Algumas das solicitações tratavam de temas centrais à gestão João Doria, como dados de multas por infrações de trânsito aplicadas pela CET, da fila de espera por exames de saúde e de doações feitas por empresários às escolas municipais.
Esses profissionais relataram ter recebido negativas evasivas aos pedidos, além de ligações de secretários queixando-se das solicitações. Naquele mesmo ano, reportagem do Estado de S. Paulo mostrou que servidores agiam para dificultar o acesso, via LAI, de informações solicitadas por jornalistas. Um funcionário foi demitido após a publicação.
‘Cultura do sigilo’
O não cumprimento adequado da LAI é considerado infração administrativa e transgressão militar se cometido por integrantes das Forças Armadas. Servidores públicos ficam sujeitos à suspensão ou a processos por improbidade administrativa.
Entre as condutas previstas de punição estão a de recusar a fornecer informação, atrasar deliberadamente a resposta ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa.
Para a Artigo 19, os casos relatados pela ONG demonstram que a noção de transparência no serviço público ainda esbarra entre agentes públicos e servidores.
“Essas situações demonstram que ainda existe no Brasil um alto grau do que pode ser chamado de ‘cultura de sigilo’ (…), de forma que a busca por informação ainda é encarada, muitas vezes como um insulto ou exigência excessiva à Administração Pública”
Artigo 19
trecho do relatório “Identidade Revelada”
Tecnologia como alternativa
A exigência de identificação foi bastante questionada por grupos de transparência à época da sanção da LAI. Para eles, o sigilo era necessário por questões de segurança e uma forma de evitar perseguições políticas ou qualquer tipo de retaliação (nos casos em que o autor for um servidor público, por exemplo).
A possibilidade do anonimato esbarra numa interpretação comum dada ao inciso IV do artigo 5º da Constituição, segundo o qual é “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Para além dessa discussão, a Artigo 19 sugere mecanismos relativamente simples que podem ser adotados pelos órgãos públicos, como determinar que o servidor responsável por responder uma demanda não tenha acesso à identificação do requerente.
Como observa a ONG, parte dessas propostas ainda passa pela necessidade de mudança “cultural e comportamental” de quem lida com dados públicos.
Soluções possíveis
- Proteger os dados do requerente de informação
- Impedir acesso das informações de identidade por servidores
- Impedir a circulação das informações pessoais dos requerentes
- Treinamento contínuo dos servidores que lidam com pedidos de informação
- Criar um canal para recebimento de denúncias feitas por requerentes
Fonte: nexojornal – Lilian Venturini – 02 Jun 2018 -(atualizado 04/Jun 14h57)