Jurisprudência do Cade sobre cartéis em licitações públicas
11.06.2024 – Licitação e Contrato

As compras públicas são notoriamente reconhecidas por abranger uma grande parte do orçamento brasileiro. Em 2017, as aquisições governamentais representaram cerca de 13,5% das despesas do governo e aproximadamente 6,5% do PIB. Em 2020, o Brasil gastou aproximadamente R$ 35,5 bilhões em bens, serviços e obras (OCDE, 2021 [1]). Devido à magnitude dos fluxos financeiros e à complexidade dos procedimentos, as compras públicas estão constantemente expostas a fraudes, corrupção e condutas anticoncorrenciais.
A temática das licitações tem atraído a atenção da autoridade antitruste brasileira, que em 2023 lidou com infrações à ordem econômica envolvendo licitações em diversas áreas [2]. O Cade, órgão de defesa da concorrência responsável pela investigação de ilícitos concorrenciais, reconhece publicamente esses perigos [3] e fomenta a publicação de manuais para o combate de cartéis em licitações, cuja segunda edição foi lançada em 2020 [4].
De antemão, é importante diferenciar conluios de cartéis, com base no nível de integração entre os concorrentes. Um conluio é um acordo entre empresas de um mercado sobre as quantidades a serem produzidas ou os preços a serem praticados. Em contraste, um cartel é um conjunto de empresas que colaboram estreitamente, estabelecendo acordos sobre a quantidade a ser produzida, o preço a ser praticado ou a divisão de mercados [5].
A Lei Brasileira de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/11) impõe penalidades rígidas para os envolvidos em cartéis, e tais condutas podem configurar crimes, conforme o artigo 4º da Lei nº 8.137/1990 (Lei de Crimes Contra a Ordem Econômica) e o artigo 155, inciso XI, da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021).
Além disso, a prática de cartéis, a longo prazo, acarreta aumento nos preços dos produtos e serviços e queda da competitividade no setor, devido à falta de incentivos para a competição justa. A Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que os cartéis promovem o incremento dos preços em 10% acima do preço competitivo e a redução da oferta em 20% [6].
Padrões de detecção de cartéis em compras públicas
Dentre os padrões mais comuns característicos do cartel em compras públicas, a OCDE considera os seguintes: realização de propostas fictícias ou de cobertura; rodízio entre os vencedores dos certames; supressão de propostas; e divisão de mercado [7].
Em relação à realização de propostas fictícias ou de cobertura [8], trata-se de um acordo firmado entre as empresas licitantes para fornecer propostas que forjem um cenário competitivo na licitação e sagrem determinada empresa integrante do grupo cartelista como vencedora. Isso pode envolver mecanismos compensatórios para os perdedores, na medida em que nos casos em que não for possível uma divisão de mercado [9] (por exemplo, dos lotes de determinada licitação), quem perde deve ser compensado — o cartel, embora lícito, não será economicamente irracional.
A esse respeito, cite-se que, em 2015, o cartel de lances falsos em obras de engenharia em prefeituras do Rio Grande do Norte [10], que se mantinha através de documentos originais de uma empresa na posse de outra, planilhas de custos, cotações de preços e propostas de preços de uma empresa na sede de uma companhia concorrente. Algumas das propostas para apresentação em licitações revelavam idênticos erros de grafia.
Além disso, a prática de rodízio entre empresas vencedoras é uma ferramenta que mantém a aparência de competitividade nas licitações. Nesse contexto, o “Clube das 16”, investigado na “lava jato” [11], exemplifica essa prática. O processo administrativo instaurado pelo Cade visava investigar possíveis práticas cartelizadas no mercado de serviços de engenharia para o setor de óleo e gás.
Os fatos investigados iniciaram em 1998, com o que ficou conhecido como “cartel das 9”. Ao longo dos anos, esse número cresceu, atingindo, em 2011, o apelido de “cartel das 16”. A prática cartelizada visava a influenciar licitações conduzidas pela Petrobras em benefício das empresas envolvidas, abrangendo obras, aquisição de materiais e prestação de serviços em refinarias e outras instalações.
A implementação dos acordos ocorria através de estratégias de rodízio entre as integrantes do cartel para vencer as licitações, definição de patamares básicos de faturamento das licitações, formação de consórcios para monitoramento do cumprimento dos termos do acordo e apresentação de propostas falsas
Da mesma forma, a supressão de propostas pelos concorrentes cartelistas cria uma concorrência aparente, comportamento que é supervisionado. As alianças de cartéis são frágeis, pois, pelo princípio da racionalidade econômica, as empresas tendem aos benefícios individuais. Esse monitoramento confere maior sofisticação ao cartel e permite a postergação das práticas ilícitas, que só são coibidas quando as autoridades detectam falhas no cartel, como o ingresso de um concorrente independente, ou um lapso na fiscalização mútua dos cartelistas. A supervisão dessas práticas é geralmente realizada pelas próprias empresas ou por um “coordenador” eleito para tal fim [12].
Por fim, na divisão de mercados os concorrentes podem distribuir entre si as licitações previstas ou até dos lotes dentro de um mesmo certame. Um dos julgados em que se depurou essa prática foi o “caso dos painéis solares” [13] — aliás, um dos primeiros em que houve a condenação do cartel somente com base em prova indiciária — no qual as empresas distribuíam entre si os certames a respeito desse objeto, especificando qual seria a vencedora de um ou de outro.
Acordos de leniência nos cartéis em licitação
Não seria adequado tratar de cartéis em licitação sem abordar, ainda que brevemente, os acordos de leniência. Por serem acordos secretos entre concorrentes, os cartéis são frequentemente difíceis de detectar e provar além de uma dúvida razoável. Nesse contexto, a figura do whistleblower é crucial para a descoberta desses ilícitos, sendo o primeiro elemento denunciante. No caso do “clube das 16”, as atividades ilícitas, que ocorreram de 1998 a 2014, só foram reveladas às autoridades antitruste por meio de acordos de leniência com algumas das empresas envolvidas [14].
O instituto do acordo de leniência no Brasil pode ser celebrado entre o Cade e pessoas físicas e jurídicas, visando à obtenção de provas suficientes para a ação e condenação dos envolvidos na infração. De acordo com a International Competition Network (ICN), entre 2017 e 2018, 31 das 34 jurisdições entrevistadas ofereceram redução de multas ou outros benefícios para requerentes subsequentes de leniência [15].
O requerente de leniência bem-sucedido permanece responsável por quaisquer danos causados. O programa de leniência também contém uma disposição de “leniência plus”, segundo a qual qualquer coparticipante que apresente provas referente a outra conduta colusiva ainda desconhecida pelo Cade será concedida uma redução de um terço no penalidades impostas na investigação original [16]. Além disso, o coparticipante gozará de clemência pela prática revelada. Os requerentes de clemência estão isentos de sanções penais e de exclusão de participação em compras governamentais.
O primeiro caso de leniência plus no Brasil ocorreu em investigações da operação “lava jato”, em julho de 2015. A construtora Camargo Corrêa e ex-funcionários reconheceram sua participação em um suposto cartel na licitação da Eletronuclear para a usina de Angra 3 [17], fornecendo provas para a investigação [18]. Assim, a empresa reuniu condições para o benefício da leniência plus, obtendo imunidade e uma redução de 40% da multa prevista na Lei Antitruste.
Força consignar que os acordos de leniência, ainda que objeto de certa controvérsia, têm sido importantes mecanismos para a apuração de cartéis em licitações públicas. Por meio do acordo de leniência, a pessoa interna ao cartel colabora com as investigações e proporciona a identificação dos demais autores da infração à ordem econômica; e a obtenção de documentos probatórios. Este acordo poderá ter como consequência a extinção da ação punitiva ou redução de um a dois terços da penalidade aplicável. São requisitos cumulativos pioneirismo no acordo; cessação da conduta; ausência de provas suficientes à condenação; e confissão da participação no ilícito e comparecimento quando solicitada.
Os acordos de leniência foram fundamentais para a formação do conjunto probatório que lastreou as condenações nos casos envolvendo a “lava jato”, sendo o maior foco dos acordos de leniência durante a vigência da mencionada operação foi em cartéis em licitações públicas [19].
A aplicação de penalidades no âmbito do antitruste a cartéis em licitações é importante para promover a concorrência justa e proteger a ordem econômica. Nessa toada, a pena mais gravosa é a proibição de o infrator participar de licitações, pelo tempo mínimo de cinco anos [20]. Tal penalidade representa a inserção de punições não pecuniárias na defesa da concorrência. Outrossim, para Athayde [21], as penalidades não monetárias podem ser consideradas como um meio de fortalecer a aplicação das leis antitruste, observado por meio de três perspectivas distintas:
- o risco de insuficiência de dissuasão, onde as penalidades financeiras por si só podem não ser eficazes em algumas situações, sendo necessário combinar sanções não monetárias para garantir níveis mais altos de severidade e desencorajamento;
- o risco de excessiva dissuasão, indicando que penalidades não monetárias podem ser empregadas para evitar a imposição de penalidades financeiras, que poderiam ser excessivamente prejudiciais;
- e uma perspectiva geral, pois as penalidades não monetárias possibilitam ajustes na dinâmica competitiva dos mercados.
Atualmente, o Tribunal do Cade adota a perspectiva do risco de insuficiência de dissuasão, que consiste em impor a pena de proibição temporária de licitar em casos que seriam considerados mais graves, como a condenação em cartel em licitações para concessão de uso de áreas para exploração comercial da atividade de cafeteria em diversos aeroportos [22], ocorrida entre maio e novembro de 2014 [23].
Além das sanções pecuniárias, os responsáveis foram impedidos de participar de licitações públicas em níveis federal, estadual, municipal e do Distrito Federal por cinco anos, com o prazo reduzido pelo tempo de suspensão prévia pela Infraero no mesmo caso. As penalidades aplicadas pelo Cade em cartéis de licitações incluem não apenas multas financeiras, mas também a exclusão dos infratores dos processos licitatórios. Essas medidas visam a punir os envolvidos e proteger a integridade e competitividade do ambiente de negócios, promovendo justiça e transparência nas relações comerciais.
Considerações finais
Em conclusão, os cartéis em licitações representam uma séria ameaça à concorrência e à transparência nos processos de aquisição pública, minando os princípios fundamentais da livre competição e prejudicando a economia como um todo. O tratamento dado pelo Cade a essas práticas ilícitas é crucial para dissuadir futuras infrações, uma vez que as penalidades impostas não se limitam apenas a multas financeiras, mas incluem também restrições de participação em licitações públicas.
Portanto, a configuração da infração à ordem econômica, conforme a Lei 12.529/11, exige prova contundente de que as empresas investigadas combinaram preços ou ajustaram vantagens na concorrência pública. O Cade tende a condenar empresas por cartel em licitações públicas apenas quando há provas robustas. Essas provas incluem compartilhamento de informações sensíveis, escutas telefônicas, documentos, atas de reunião, testemunhas, documentos apreendidos em busca e apreensão, e acordos de leniência promovidos por membros do cartel.
É imprescindível que as empresas interessadas em vencer a licitação tenham realmente o ânimo de competir entre si e não estejam previamente ajustadas em relação aos preços e condições das propostas, a fim de elevá-los a um patamar específico e/ou determinar que certa empresa vença mediante troca de vantagens mútuas. Mais uma vez: coibir cartéis em licitação deve ser levado a sério, pois não se trata de resguardar apenas mercados e concorrentes, mas de proteger a sociedade como um todo.
[1] Disponível em: https://shorturl.at/2bPzQ p. 13 Acesso em:15.02.2024
[2] Como exemplo, podemos citar os Processos Administrativos nº 08700.000413/2021-41; 08700.003699/2017-31; 08700.000269/2018-48; 08700.004095/2020-15; 08700.002086/2015-14.
[3] Cade. (04/10). Semana Nacional de Combate à Cartéis 2021. Brasília, 2021. 1 vídeo (2 h 20 min 28 seg). Disponível no YouTube
[4]CADE. Guia de Combate a cartéis em licitação, 2019.
[5] MOCHÓN, Francisco. Economia: teoria e prática. 5 ed. p. 153. São Paulo, McGraw Hill, 2006.
[6] Tal estimativa é considerada conservadora por muitos autores. É estimado que a média de sobrepreço em mercados cartelizados que varia de 10% a 20%, podendo chegar a até 50% (ARAUJO, CHEDE, 2012)
ARAUJO, Mariana Tavares; CHEDE, Marcio Benvenga. Repressão a cartéis em múltiplas jurisdições. Temas atuais de direito da concorrência. São Paulo: Singular, p. 224-225, 2012.
[7] OCDE. Diretrizes para Combater o Conluio entre Concorrentes em Compras Públicas. Fevereiro de 2009, p.2
[8] Procedimento conhecido na doutrina estrangeira como bid rigging. vide OECD (2021), Fighting Bid Rigging in Brazil: A Review of Federal Public Procurement
[10] Processo Administrativo 08700.002247/2015-70
[11] Processo Administrativo 08700.002086/2015-14
[12] MARSHALL, Robert MARX, L.The economics of collusion: cartels and bidding rings. Cambridge: The MIT Press, 2012, p. 130-131
[13] PA 08012.001273/2010-24
[14] Tal iniciativa inclusive, representou a inauguração do uso frequente do instituto, que no presente caso culminou na celebração, em 19/03/2015, de Acordo de Leniência nº 01/2015;
[15] Vide OECD (2018), Challenges and Coordination of Leniency Programmes at oecd and ICN, Cartel Working Group, report on “Good Practices for Incentivising Leniency Applications
[16] BITENCOURT, Rafael Braian Gonçalves. Análise da possibilidade de efeitos Procollusive no Programa de Leniência do Cade. pg.24 2018.
[17] Acordo de Leniência N° 06/2015. Disponível em: https://shorturl.at/ewUIo Acesso em 20/02/2024
[18] O acordo de Leniência celebrado subsidiou as investigações promovidas em face do PA 08700.007351/2015-51
[19] Craveiro, P. (2023). Uma régua na leniência antitruste: as taxas de sucesso e de declaração de cumprimento como medidas de efetividade do Programa de Leniência do Cade. Revista Do IBRAC, 219–246. Recuperado de https://shorturl.at/DHoJ0 Acesso em 15/03/2024
[20] Considerada a mais gravosa a ser aplicada pelo Cade conforme o próprio Guia de Combate a Cartéis em Licitação do Cade. Pg. 15.
[21] ATHAYDE, Amanda. Sanções Não Pecuniárias no Antitruste. p. 19. São Paulo: Singular, 2022.
[22] Aeroportos afetados: Campo Grande/MS, São Paulo/SP (Congonhas), Florianópolis/SC, Maceió/AL, Recife/PE e São José dos Pinhais/PR.
[23] PA 08700.007278/2015-17.
Fonte: ConJur – 09.06.2024
Link: https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/jurisprudencia-do-cade-sobre-carteis-em-licitacoes-publicas/